LGPD: Tratamento indevido de dados pessoais de herdeiro através de divulgação de dados de pessoa falecida.

A publicação da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), Lei n. 13.709/18,  ascendeu  no  mundo  jurídico  inúmeras  discussões  sobre  questões que, até então, eram tratadas pelo Direito através de construções doutrinárias e jurisprudenciais, por não haver uma legislação específica que dispunha sobre um determinado tema. Ainda assim, a LGPD não trouxe a solução esperada em diversos temas relevantes para o Direito, deixando lacunas que deverão ser preenchidas com novas construções doutrinárias e jurisprudenciais, ou ainda, esclarecidas e regulamentadas pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados Pessoais (ANPD).

Diferentemente da General Data Protection Regulation (GDPR) em vigor na União Européia, que em seu Recital 27, dispôs que ela não se aplicaria a pessoa falecida, deixando ao arbítrio de cada Estado-Membro criar ou não regras para tratamento de dados dos falecidos. Mas com relação à LGPD, não há no texto da Lei nenhum artigo expresso que vede sua aplicação para a proteção de dadospessoais dos falecidos.

No entanto, em vários de seus artigos, é ratificado que a lei está adstrita a dados de “pessoas naturais”, tais como os arts. 1º, 5º (incisos I ao VII) e 17. Relembrando as aulas iniciais de Direito Civil, temos que o conceito de pessoa natural nos remete ao ser humano enquanto pessoa, dotada de capacidade e personalidade, tendo início com o nascimento com vida, sendo que “A existência da pessoa natural termina com a morte” (art. 6º, do Código Civil).

Assim, com relação à proteção de dados de pessoas falecidas, a fundamentação jurídica a ser utilizada é aquela que trata dos direitos da personalidade da pessoa morta, disposta nos Parágrafos Únicos dos arts. 12 e 20, ambos do Código Civil, que dispõem:

Art. 12. Pode-se exigir que cesse ameaça, ou lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.

Parágrafo único. Em se tratando de morto, terá legitimidade para requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau.

Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.

Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.

Ou seja, em que pese o jargão jurídico mors omnia solvit (a morte tudo resolve), a nossa legislação reconhece a necessidade de tutelar os direitos da personalidade (ao menos parte dela) após a morte da pessoa, merecendo proteção a imagem e a honra de quem falece, “porque elas permanecem perenemente lembradas nas memórias, como bens imortais que se prolongam para muito além da vida, estando até acima desta” (REsp 521697⁄RJ, Rel. Ministro CESAR ASFOR ROCHA, QUARTA TURMA, julgado em 16⁄02⁄2006, DJ 20⁄03⁄2006, p. 276).

Mas é importante destacar que não há a transmissibilidade dos mencionados direitos de personalidade aos herdeiros do falecido, uma vez que esses são direitos personalíssimos e intransmissíveis. O que há é uma permissão legal para que os herdeiros defendam esses direitos perante o Poder Judiciário após a morte da pessoa, podendo os herdeiros, inclusive, pleitearem indenização por danos morais para si em decorrência do uso indevido desses dados.

Segundo o entendimento da Ministra Nancy Andrighi sobre a pretensão compensatória do dano moral dos herdeiros, eles estariam exercendo direito próprio por serem lesados indiretos, “pois sofrem os efeitos do dano causado à pessoa morta, um dano moral reflexo, portanto.”. Refere-se, assim, a ofensa ao  próprio  direito  da  personalidade  (Voto-Vista  no  REsp  521697⁄RJ,  Rel. Ministro CESAR ASFOR ROCHA, QUARTA TURMA, julgado em 16⁄02⁄2006, DJ 20⁄03⁄2006, p. 276).

Todavia, com a entrada em vigor da LGPD, seria possível ao herdeiro pleitear, diretamente, o ressarcimento pelos danos que tiver sofrido, desde que, os dados do falecido também puderem ser classificados como dados pessoais do herdeiro, uma vez que, segundo o conceito de dado pessoal disposto no art. 5º, inc. I, dado pessoal é toda “informação relacionada a pessoa natural identificada ou identificável;”.

Ou seja, se através dos dados do falecido for possível identificar o herdeiro, aquele passará a ser considerado, nos termos da Lei, como um dado pessoal do herdeiro.

Um exemplo plausível seria uma notícia difamatória sobre o pai falecido de uma pessoa. Ainda que o nome do filho vivo não fosse citado na notícia veiculada, ele poderia ser identificado perante seus amigos e comunidade como sendo o filho daquela pessoa falecida. Como consequência, o filho vivo poderia ter violada a sua intimidade, honra e imagem, em afronta a um dos fundamentos da LGPD (art. 2º, inc. IV).

À pessoa que veiculou a notícia (controlador ou operador) com os dados de pessoa falecida, agora configurado como dados pessoais de pessoa natural identificável, caberá se defender justificando o tratamento de dados pessoais com alguma das finalidades descritas nos incisos do art. 7º, nos termos do art. 43, da LGPD.

Não sendo afastada a sua responsabilidade, o herdeiro, na qualidade de titular dedados pessoais, poderá pleitear diretamente o ressarcimento pelos danos sofridos, com base no art. 42, da LGPD, além de ainda poder exercer os direitos dispostos no art. 18, como a eliminação de seus dados pessoais.

Portanto, a entrada em vigor da LGPD trouxe uma ferramenta facilitadora aos herdeiros de pessoa falecida, que não precisarão, necessariamente, se socorrer dos fundamentos dos Parágrafos Únicos dos arts. 12 e 20, ambos do Código Civil, para defenderem seus interesses frente ao tratamento de dados de pessoa falecida. O que antes era tratado pela jurisprudência como um direito reflexo da pessoa, poderá agora ser tratado como um direto inerente a ela, sendo mais facilmente verificado o nexo de causalidade para configurar o exercício de seu direito.

 

Por Dra. Vanessa Batista