As recentes promulgações da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e do Marco Civil da Internet transpareceram a importância que hoje é dada pelo ordenamento jurídico brasileiro ao armazenamento, tratamento e compartilhamento de dados pessoais.
Ocorre que, no compartilhamento de dados pessoais com a Administração Pública, regido primordialmente pela LGPD e pelo Decreto 10.046/2019, infere-se em pontos cegos frente à aplicabilidade destas normas, fato este que acaba por resultar em discussões acerca dos limites que devem ser impostos ao Poder Público quanto ao tratamento e compartilhamento de dados pessoais.
Uma dessas discussões teve início em junho de 2020, quando o site jornalístico “The Intercept” veiculou uma matéria noticiando que a Agência Brasileira de Inteligência Nacional (ABIN) e o Serviço Federal de Processamento de Dados (SERPO), haviam estabelecido tratativas visando o compartilhamento de dados pessoais de mais de 76 milhões de brasileiros que possuem a Carteira Nacional de Habilitação (CNH), originalmente coletados e armazenados pelo Departamento Nacional de Trânsito (DENATRAN), o que possibilitaria que a ABIN tivesse acesso à todas as informações constantes do banco de dados do DENATRAN.
Assim, o Partido Socialista Brasileiro (PSB) ajuizou uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 695) perante a Suprema Corte, com o fim de afastar definitivamente o compartilhamento de dados entre os entes distintos do Poder Público, sob o argumento de que tal fato viola a garantia fundamental de proteção da privacidade; a garantia de proteção dos dados pessoais; e a proteção à autodeterminação informativa dos cidadãos brasileiros.
Além disso, sustenta o PSB que o Poder Público nem poderia realizar tais tratativas, uma vez que inexistiria qualquer autorização legislativa para tanto, e que tal compartilhamento massivo de dados, sem uma explicação razoável frente a sua finalidade, representaria um risco de vigilância exacerbada aos cidadãos, que sequer se envolveram com práticas ilícitas.
Em contrapartida, a União defendeu que o compartilhamento de dados pessoais entre os órgãos do Poder Público estaria expressamente amparado na lei que estipula as diretrizes da Política Nacional de Inteligência (Decreto 8.793/2016), que estabeleceu o Sistema Brasileiro de Inteligência (SISBIN), e no Decreto 10.046/2019, que institui o Cadastro Base do Cidadão, que corresponde a uma espécie de “cadastro geral nacional”.
Todavia, em dezembro de 2020, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB) pleiteou a inconstitucionalidade do Decreto 10.046/2019 ao Supremo, que serviu como amparo legal ao referido compartilhamento de dados, afirmando que este possui incompatibilidades inconciliáveis com a LGPD, com a Lei de Acesso à Informação (LAI), e com os direitos fundamentais à privacidade e à proteção de dados pessoais, uma vez que o referido Decreto não transparece de forma clara os critérios de coleta, tratamento e finalidade do uso dos dados.
O CFOAB também sustentou a necessidade de exclusão do Cadastro Base do Cidadão, instituindo que este materializa um perigo de autoritarismo, na medida em que uma concentração de dados dessa magnitude possibilitaria a criação de um instrumento estatal que pode, eventualmente, ser utilizado como mecanismo para a elaboração de catálogos de cidadãos, dossiês de espionagem contra opositores políticos e atividades de vigilância totalitária.
O relator de ambas as ações, o Ministro Gilmar Mendes, apontou que, embora o compartilhamento de dados entre o DENATRAN e a ABIN tenha se baseado em certa previsão legal, a tese fundamentada pelo Decreto 8.793/2016 faz-se incompatível com uma interpretação sistemática do mesmo, na medida que essa legislação não dispõe sobre esse compartilhamento entre órgãos e entidades da Administração Pública que não integram o Sistema Brasileiro de Inteligência.
Agora, referindo-se à conformidade do Decreto 10.046/2019 com a LGPD, o Ministro destaca que este acaba por afastar radicalmente o princípio da finalidade consagrado pela referida norma, que preconiza o tratamento de dados com fins legítimos, específicos, explícitos e informados ao titular. Portanto, considera o Ministro que, diante da omissão da finalidade de tratamento dos dados pela ABIN e pelo DENATRAN, não é possível determinarmos se o compartilhamento dos referidos dados, na dimensão apresentada, é realmente necessário para alcançar seu objetivo.
Dada a repercussão do assunto, o julgamento das referidas ações ocorrerá em sessão Plenária na próxima quarta-feira, no dia 03 de março de 2022, e o seu resultado será fundamental para a matéria de privacidade e proteção de dados pessoais no Brasil.
A equipe especializada do escritório Zanetti e Paes de Barros Advogados permanece à disposição para solucionar eventuais dúvidas acerca do tema.
Luiza Fernandes Barbieri, Bianca Oliveira Begossi,
Daniel dos Santos Fonseca Lago e Guilherme Amaral Ricardo